ENTREVISTA: Crise na economia mundial e Auditoria Cidadã

Publicado em 02 de Abril de 2020 às 18h35. Atualizado em 02 de Abril de 2020 às 18h53

 

A Auditoria Cidadã da Dívida é uma associação, sem fins lucrativos que, desde 2001, realiza auditoria da dívida pública brasileira, interna e externa, federal, estaduais e municipais. Desde o início, a associação é coordenada de forma voluntária por Maria Lucia Fattorelli, primeira entrevistada do espaço Ping Pong do site do ANDES Sindicato Nacional.

Maria Lucia é figura conhecida no debate econômico brasileiro. Especialista em Administração Tributária e graduada em Ciências Contábeis e em Administração, foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Externa Equatoriana - CAIC - Subcomissão de Dívida Externa com Bancos Privados Internacionais (2007-2008). Também atuou como Assessora Técnica da Comissão Parlamentar de Inquérito da Dívida Pública na Câmara dos Deputados, em Brasília (2009-2010) e foi auditora fiscal da Receita Federal do Brasil entre 1982 e 2010. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Auditoria da Dívida Pública e Administração Tributária.

ANDES-SN: Maria Lúcia, nesse momento de aprofundamento da crise na economia mundial e de pandemia, qual tarefa cumpre a Auditoria Cidadã? 

MLF: A pandemia está escancarando as graves injustiças sociais no Brasil, que jamais foram resolvidas devido ao privilégio na destinação dos recursos para o Sistema da Dívida. Grande parte da população não possui sequer água potável, rede de esgoto ou uma casa para morar, enquanto a saúde pública clama por mais equipamentos de proteção para médicos e enfermeiros, e a assistência social tem de agir com urgência para salvar a vida de pessoas que estão sem trabalho.

Nessa conjuntura, cabe à Auditoria Cidadã da Dívida mostrar, em primeiro lugar, que possuímos muitos recursos – tanto financeiros como patrimoniais – porém, historicamente esses recursos têm sido destinados para o pagamento de uma dívida jamais auditada conforme manda a Constituição, pois os sucessivos governos tratam a auditoria como um “tabu”, apesar das graves ilegitimidades já comprovadas, e priorizam os gastos financeiros.

Adicionalmente, a Auditoria Cidadã tem mostrado que é possível suspender o privilégio dos detentores dos títulos da dívida por um período para que os recursos se destinem ao enfrentamento da pandemia do coronavírus e ao atendimento das urgentes necessidades sociais. Quem recebe juros pode esperar! Quem perdeu emprego ou já vivia na informalidade irá morrer de fome se o Estado não socorrer com políticas públicas urgentes.

 

ANDES-SN: Diante do apresentado, você acredita que uma saída para a atual crise seria a suspensão imediata do pagamento da dívida pública?

MLF: Sim. Já publicamos uma Carta Aberta nesse sentido e estamos também pedindo apoio para assinaturas em Petição Pública, dirigida a todas as autoridades dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público.

A suspensão dos pagamentos permitirá a liberação imediata de cerca de R$ 1 TRILHÃO por ano para as ações prioritárias nas áreas sociais, que hoje são destinados para juros e amortizações da dívida.

ANDES-SN: Como isso seria feito e qual impacto teria?

MLF: Defendemos, ao mesmo tempo, a realização da auditoria da dívida, com participação social, para que possamos finalmente ter acesso a informações historicamente negadas ao público, tais como o nome dos bancos e grandes investidores que são os principais detentores de títulos da dívida, e que seriam penalizados pela suspensão. Dessa forma, a auditoria poderá dar o devido tratamento aos diversos tipos de detentores. A auditoria irá também segregar os diversos mecanismos que têm gerado dívida sem contrapartida alguma ao país.

Cabe ao governo fazer essa suspensão do pagamento dos juros e encargos da dívida pública e destinar os recursos para as urgentes necessidades da saúde, educação, assistência social etc., enquanto a auditoria poderá seguir o seu curso.  As informações relacionadas ao Sistema da Dívida estão disponíveis em meio eletrônico, permitindo que o governo as forneça mesmo na atual conjuntura de isolamento físico das pessoas.  

 

ANDES-SN: Precisamos voltar nossos olhos para a pandemia que enfrentamos. Na sua opinião, o orçamento destinado para pagamento dos juros e amortização da dívida poderia ajudar no combate à pandemia?

MLF: Sim, é exatamente isso que temos defendido nos documentos que mencionei anteriormente. Além dos cerca de R$ 1 TRILHÃO gastos todo ano com a dívida pública, e que poderiam ser redirecionados para as áreas sociais prioritárias, ainda temos:

- nos cofres do próprio Tesouro Nacional, mais de R$ 1,3 TRILHÃO, totalmente disponíveis para serem gastos imediatamente, porém, esses recursos ficam parados no caixa, formando o chamado “Colchão de Liquidez” para dar garantia aos detentores de títulos da dívida pública;

- em reservas internacionais possuímos cerca de R$ 1,8 trilhão, também parados, aplicados principalmente em títulos do Tesouro dos EUA, pelos quais recebemos juros quase zero;

- no caixa do Banco Central tem mais R$ 1 trilhão, referente à sobra de caixa dos bancos que tem sido remunerada diariamente, e deveria ser imediatamente desovada para forçar a redução da taxa de juros de mercado e aliviar as empresas e população que se encontra endividada.

Enfim, é impressionante o privilégio do setor financeiro, que desde 2015 vem batendo recorde de lucros a cada trimestre enquanto toda a economia brasileira definha. Agora, com o agravamento da crise pelo coronavírus, o Banco Central já anunciou pacote de socorro aos bancos no valor de R$1,2 trilhão! Isso prova que recursos existem – e muito – mas são direcionados ao privilegiado setor financeiro.

 

ANDES-SN: Há necessidade de algum Projeto de Lei para alterar essa destinação?

MLF: Existem fundamentos jurídicos previstos inclusive no Direito Internacional que estabelecem a prioridade dos Direitos Humanos, os que tratam das situações de Força Maior e do Estado de Necessidade que se aplicam nessa situação de calamidade social. Adicionalmente, há fundamentos jurídicos no sentido de que as dívidas devem atender ao interesse geral da coletividade que arca com o seu pagamento. É obrigação dos governos verificar o atendimento a esse princípio, além de determinar o caráter lícito ou ilícito da dívida. Daí a importância de realizar a auditoria, que deveria ser uma rotina.

Até mesmo a legislação que tem privilegiado os gastos financeiros com a dívida, tais como a Emenda Constitucional 95/2016 (que congelou todos os investimentos sociais por 20 anos, deixando livres os gastos com a dívida pública); a “Lei de Responsabilidade Fiscal”, e as Leis de Diretrizes Orçamentárias (que estabelecem metas de resultado primário, impedindo que esses trilhões sejam destinados para as áreas sociais), admitem exceções para a aplicação de recursos em conjunturas de calamidade.

Dessa forma, já existe fundamentação legal suficiente e sequer seria necessária uma nova lei para suspender os pagamentos dos gastos financeiros com a dívida pública nesse momento de calamidade social já decretada. No entanto, o Congresso Nacional pode tomar a iniciativa e obrigar o governo a aplicar as exceções já previstas na legislação em vigor, tendo em vista a evidente situação de calamidade social e a necessidade de garantir a efetividade das políticas públicas, em especial nas áreas da saúde e assistência social.

É urgente aumentar a pressão social para que o governo utilize os trilhões de recursos que já possui em caixa (no Tesouro, em Reservas Internacionais e no Banco Central, como mencionei anteriormente) e que suspenda os pagamentos da dívida pública, caso contrário, corremos o risco de aumentarem ainda mais o volume do endividamento ilegítimo e aplicarem medidas de ajuste fiscal ainda mais severas depois que superarmos a pandemia. Por isso reitero a importância de apoio à divulgação da Petição Pública.

 

ANDES-SN: Para finalizarmos, como a ACD avalia a crítica de que a suspensão do pagamento dos juros da Dívida Pública afetaria parcelas da população que não só os ricos e banqueiros?

MLF: Os dados comprovam que o Tesouro Direto, onde estão os pequenos aplicadores, corresponde a cerca de apenas 1% do total dos títulos da dívida interna brasileira. Porém, o Sistema da Dívida tem as suas estratégias de legitimação junto à população. Uma destas estratégias é incluir segmentos de trabalhadores e classe média (Fundos de Investimentos e Fundos de Pensão) em uma pequena fatia da dívida pública para depois alegar que nada pode ser feito em relação à dívida, pois prejudicaria a população como um todo, mas isso não é verdade. Visando exatamente preservar os pequenos poupadores e fundos de trabalhadores é que a nossa proposta de suspensão dos pagamentos da dívida venha acompanhada da realização da auditoria, que irá preliminarmente identificar os seus principais beneficiários, informação esta que o governo, escandalosamente, tem se negado a divulgar, apesar do fato de a dívida ser “pública”, paga com recurso público, e estar sob o princípio da publicidade, conforme manda o Artigo 37 da Constituição. A auditoria irá dar o devido tratamento a cada grupo de detentores de títulos, além de documentar as graves ilegitimidades desse Sistema da Dívida.

 

*As opiniões contidas nesta entrevista são de inteira responsabilidade dos entrevistados e não necessariamente correspondem ao posicionamento político deste Sindicato

 

 

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