V Seminário de Reparação e Ações Afirmativas do ANDES-SN debate cotas e racismo nas instituições

Atualizado em 27 de Novembro de 2023 às 15h32

Publicação original em 24/11

Nesta sexta-feira (24), o Grupo de Trabalho de Políticas de Classe para as Questões Étnico-raciais, de Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS) do ANDES-SN deu continuidade aos debates com o V Seminário de Reparação e Ações Afirmativas do Sindicato Nacional, realizado no auditório da Associação dos Docentes da Universidade Federal de Sergipe (Adufs - Seção Sindical do ANDES-SN), em São Cristovão (SE).

“Os 20 anos das lutas pelas Cotas: fortalecer as conquistas e ampliar as lutas” foi o tema da primeira mesa. Em 2012, após muita luta e mobilização do movimento negro, foi sancionada a Lei de Cotas (nº 12.711), que dispôs sobre o ingresso de negros e negras nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e deu outras providências. Neste ano, a legislação foi atualizada e sancionada.

Arilson Gomes, docente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), contou um pouco do processo de debates e da implementação da política de ação afirmativa. “Falar sobre a história de cotas no Brasil é falar de mais de 20 anos de tensões presentes. O debate do sistema de cotas, antes mesmo de ser lei, sempre teve resistências e críticas, inclusive de intelectuais brancos de esquerda, de que como seria essa identificação, que a política de ação afirmativa poderia criar um conflito racial no país ou diminuir a qualidade das universidades. Após duas décadas, refutamos esses questionamentos de que os cotistas abandonariam a graduação ou que teriam desempenho inferior ao de estudantes não cotistas”, afirmou.

O docente contou que, mesmo após a Lei de Cotas ter se mostrado efetiva, houve parlamentar, no período de avaliação da atualização da proposta, que questionou a política de ação afirmativa. Gomes defendeu a legislação e falou que as cotas são apenas o início desse processo de reparação.

Arilson Gomes defendeu, ainda, o aperfeiçoamento do controle com o procedimento de heteroidentificação, que é o processo complementar à autodeclaração, para a confirmação da condição de pessoa negra.

“Resistir para existir nesse sistema”, afirmou Ângelo Pataxó, professor indígena efetivo da rede municipal de educação de Porto Seguro (BA) e, atualmente, coordenador pedagógico da Educação Escolar Indígena.

O docente contou que viver no Brasil é uma luta diária por dignidade e garantia de direitos. Para ele, o Brasil foi e ainda é colonizado. “A população indígena era maior que Portugal, existia mais 1mil povos indígenas e os portugueses chegaram aqui, com a espada em uma mão e a cruz em outra, para impor uma cultura e uma religião. Os povos indígenas foram dizimados e negados a sua crença”, disse.

Ele contou sobre o processo de formação das professoras e dos professores em sua comunidade e como isso contribuiu para a educação de crianças e jovens indígenas. “Antes, na nossa comunidade existiam professores que não tinham o Ensino Médio. A partir dos anos 2000, começam a ter as formações e licenciaturas. Essa mesma educação que tirou a nossa cultura, o nosso costume, é a mesma que a gente vai aprender e usar como ferramenta de luta, para adentrar nesse espaço, para ser o médico indígena. Eu posso ser um médico ou enfermeiro sem deixar de ser Pataxó. Há uma diferença nisso, pois quando a gente vai cuidar dos nossos, o cuidar é diferente, o olhar é diferente”, afirmou.

Já Jucelho da Cruz, do Departamento de Biologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), que é o primeiro professor cigano doutor no Brasil, contou um pouco da sua experiência como cigano e a luta para incluir as cotas para estudantes ciganas e ciganos na Bahia.

O docente também foi autor do Texto de Resolução, apresentado no 38º Congresso do ANDES-SN, em 2019, para a inclusão do povo cigano na política de cotas raciais. “Temos poucos docentes e estudantes ciganos nas universidades. Somos três professores ciganos, que eu tenho conhecimento, dentro das universidades brasileiras. Portanto, há essa ausência de políticas públicas para essa inclusão”, disse.

“Eu nasci dentro de uma barraca, fui criado de forma nômade e itinerante até os 15 anos e comecei a estudar tardiamente. Sofremos preconceito com a perpetuação de uma imagem folclorizada de que ciganos roubam crianças e matam pessoas. Na verdade, somos um povo perseguido, o holocausto dizimou mais da metade da população cigana, a Alemanha tinha uma legislação anticigana, e aqui no Brasil também. Tiradentes [considerado mártir do movimento republicano] assassinou covardemente dezenas de ciganos. Somos um povo perseguido”, declarou.  

Segundo Cruz, a falta de reconhecimento, por parte do estado brasileiro, dessa população cria obstáculos para a inclusão do povo cigano. Ele contou que, no Ministério de Igualdade Racial (MIR), o responsável pela Coordenação de Políticas para Povos Ciganos não é cigano, diferente das coordenações Indígenas e Quilombolas, que contam com pessoas do segmento. “Os ciganos constituem a minoria étnica menos conhecida, e talvez por isso mais discriminada do Brasil”, avaliou. “Somos cidadãos e precisamos lutar por nossos direitos, para que possamos ter mais ciganos nas universidades”, reforçou.

Letícia Nascimento, docente da Universidade Federal do Piauí (Ufpi) e da coordenação GTPCEGDS do ANDES-SN, também trouxe um pouco da sua experiência de vida. Em 2019, ela ingressou como a primeira docente travesti da Ufpi. “Na Ufpi, eu sou a primeira e única docente travesti da universidade. Quanto tempo levará para ter uma segunda ou terceira?”, questionou.

Para a docente, as violências que as travestis sofrem são obstáculos para o acesso à educação. “As travestis não se evadem da escola, não a deixam porque querem, elas são expulsas desse espaço, e isso coincide com a expulsão de suas casas pela suas próprias famílias. Muitas de nós se assumem com 13, 14 anos”, explicou.

Nascimento citou dados da Andifes, de 2018, que revelam que alunas e alunos trans em universidades brasileiras representam apenas 0,8% do universo total de estudantes. “Temos uma política de assistência estudantil que está se renovando e entendemos que é importante colocar pessoas trans e travestis como uma política também prioritária para o acesso e permanência estudantil”, afirmou a diretora do ANDES-SN.

A segunda mesa do seminário, “Racismo institucional nas Universidades, IF e CEFET: combater, debater e enfrentar”, trouxe também relatos das dificuldades em se estabelecer a lei de cotas em concursos públicos nas instituições.

Caetana Melo, docente doutore do departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Coletivo de Docentes Negras/os/es da USP, contou o processo da luta encampada pelo Coletivo e demais movimentos e entidades sindicais, desde o ano passado, pela implantação de ações afirmativas nos concursos públicos da USP.

O Coletivo propôs uma meta de inclusão de 37% de docentes pretas, pretos, pardas, pardos e indígenas entre as contratadas e os contratados. Hoje, essa porcentagem é de apenas 2,3%. A USP conta com 5.531 docentes e apenas 125 deles não são brancos.

Caetana Melo contou que, em 22 de maio de 2023, o Conselho Universitário da USP aprovou uma resolução que estabelece pontuação diferenciada para pessoas pretas, pardas e indígenas (PPIs) em concursos públicos de seleção de docentes, técnicas e técnicos. No caso dos concursos para ingresso de docentes, apenas em editais com mais de três vagas, seria aplicada reserva de 20% para PPIs.

“Diante desse processo pouco participativo, sem ouvir efetivamente o movimento negro e os coletivos negros da universidade, consideramos a resolução insuficiente e inócua, visto que as chances de fato modificar o quadro de composição de docentes da universidade são muito pequenas”, criticou Melo.

“Continuamos pautando a necessidade de um debate mais amplo e estamos acompanhando a implementação da resolução nas várias unidades da universidade e pensando como construir um diálogo com a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento e também com a Reitoria para que essa resolução possa ser revista”, disse.

Já Ilzver Matos, docente do Departamento de Direito da UFS, trouxe um relato da sua origem como homem negro, filho da classe trabalhadora e que sofreu racismo institucional nos últimos anos. Em 2019, Ilzver Matos foi aprovado em 1º lugar pelas cotas raciais e em 2° lugar na ampla concorrência para o Departamento de Direito (DDI) da UFS. Em outubro de 2022, havia três vagas abertas no DDI e, mesmo assim, a universidade não empossou o agora docente. Após muita luta e uma longa batalha judicial, no dia 17 de março deste ano, Ilzver foi empossado no cargo efetivo de professor.

Em 2014, foi promulgada a Lei nº 12.990, que determina a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos da administração federal para candidatas e candidatos que se declararem negras e negros. No entanto, muitas universidades públicas ao realizarem seus processos seletivos, vaga por vaga, não têm destinado vagas para a reserva, conforme prevê a Lei.

Para o docente, o Brasil não pensou em uma reparação para o povo negro, após o período da escravidão. “Falar de reparação é fazer emergir um debate que foi apagado, esquecido e invisibilizado na história do nosso país, em especial, com relação às populações negras. Nós não teremos uma democracia enquanto a gente não resolver o problema do racismo na sociedade brasileira. Falar sobre o espaço das universidades enquanto espaço democrático é falar sobre o ingresso de alunos e professores e professoras negras nesse território que, historicamente, sempre foi um espaço ocupado por pessoas da elite intelectual brasileira”, criticou. “Nós somos pessoas negras, intelectualizadas e temos uma grande contribuição a dar para o nosso país”, completou.

De acordo com Gisvaldo Oliveira, da coordenação do GTPCEGDS do ANDES-SN, os debates servirão de subsídios para que o Sindicato pense nos próximos passos da luta antirracista nas instituições de ensino superior do país.

“As duas mesas realizadas hoje estavam em plena sintonia e impulsionaram o debate sobre o balanço dos 20 anos das lutas pelas cotas e também os desafios de implementação efetiva e de ampliação dessa importante política de ação afirmativa. Além disso, foi discutido também, de forma sintonizada nas duas mesas, os diferentes casos e situações de racismo institucional sofrido pelos docentes nas universidades, institutos federais e Cefet”, avaliou.

A programação segue no sábado (25) com a realização do IV Seminário Nacional de Diversidade Sexual e o início do V Seminário Nacional de Mulheres.

Protesto
Antes do início dos debates, pela manhã, cerca de 70 pessoas saíram em cortejo pelos corredores da UFS ao som do grupo Maracatu Àse D'Ori, em ato que integra a agenda do Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, marcado em 25 de novembro. O destino final foi o Pórtico da universidade em que docentes, técnicas e estudantes repudiaram e denunciaram as violências vividas pelas mulheres em casa, no trabalho, no transporte público e nos demais espaços de convívio.

A comunidade acadêmica da UFS denunciou os enfrentamentos aos assédios sexual, moral e institucional nas universidades. Relembraram também o feminicídio de Danielle Bispo, trabalhadora terceirizada do Restaurante Universitário. O crime foi cometido pelo seu companheiro, há 10 anos, no seu local de trabalho.

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