Após a repercussão do caso envolvendo uma criança de 11 anos vítima de estupro, que estava grávida, o Hospital Universitário (HU) Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), realizou o aborto legal nessa quarta-feira (22). A equipe médica do HU havia se negado a fazer o procedimento tempos antes, quando a menina ainda tinha 10 anos, por afirmar que a criança já estava em idade gestacional acima de 20 semanas.
Na segunda-feira (20), o Ministério Público Federal (MPF) instaurou inquérito civil para investigar a conduta da unidade de saúde, que é cadastrada junto ao Ministério da Saúde como referência para interrupção legal da gestação. A interrupção da gravidez de vítimas de violência sexual está prevista em lei brasileira, e independe do tempo de gestação, especialmente quando a gravidez coloca em risco a vida da vítima, como foi o caso.
O MPF também emitiu uma recomendação na quarta-feira (22) à superintendente do HU, Joanita Angela Gonzaga Del Moral, para que fosse garantido a pacientes que procurem o serviço de saúde a realização de procedimentos de interrupção da gestação nas hipóteses de aborto legal, a serem praticados por médico, independentemente da idade gestacional e peso fetal.
No caso da criança, segundo o documento, “a negativa de realização do aborto ou exigência de requisitos não previstos em lei” configura “hipótese de violência psicológica” e de “violência institucional”. Em razão da urgência, o MPF havia dado um prazo até quinta-feira (23) para que o HU informasse sobre o acatamento da recomendação, o que foi feito.
Caso
Dois dias após a equipe médica do HU se recusar a fazer o aborto, a menina foi enviada para um abrigo, impedindo que ela fosse submetida ao procedimento, e ficou no local, separada de sua família, por mais de um mês.
O caso só veio à tona após a divulgação, pelos veículos de imprensa Portal Catarinas e Intercept Brasil, do vídeo da audiência em que a menina foi ouvida. A filmagem mostrou a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora Mirela Dutra Alberton, do Ministério Público catarinense, incentivando a criança a seguir com a gestação. A promotora foi quem ajuizou a ação cautelar pedindo o abrigo institucional da menina.
Em audiência, no dia 9 de maio, a juíza e promotora induziram a criança a manter a gravidez por mais “uma ou duas semanas”, para aumentar a chance de sobrevida do feto. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questionou a juíza que ainda interrogou a criança e tentou convencer a menina e a sua mãe a seguir com a gravidez.
A magistrada ainda usou da palavra “bebê” para se referir ao feto e chegou a dizer que autorizar o aborto legal seria um “homicídio”.
A ofensiva continuou com a promotora Alberton. “Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele… Ele vai nascer chorando, não [inaudível] medicamento para ele morrer”.
Protestos
A repercussão do caso gerou protestos nas redes sociais e nas ruas. Um abaixo-assinado pelo afastamento da juíza Joana Ribeiro Zimmer do exercício de suas funções, organizado pelo Coletivo Juntas, já tinha coletado mais de 300 mil assinaturas até quinta (23).
O Conselho Nacional de Justiça recebeu ao menos quatro denúncias contra a magistrada e apura o caso através da Corregedoria Nacional do órgão. Se julgadas procedentes, a juíza pode ser afastada e, se condenada, aposentada compulsoriamente. A Justiça de SC também investiga o caso.
Em diversas cidades do país ocorreram protestos organizados por coletivos feministas e entidades que defendem o direito ao aborto, como Florianópolis, São Paulo e Brasília.
Em nota, a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto (FNPLA) manifestou o seu repúdio na condução de todo o processo. “A atitude coordenada entre a magistrada Joana Ribeiro e a promotora Mirela Dutra Alberton, que pressionaram a criança a levar ao final a gestação para que outra pessoa adote é desrespeitosa, acintosa e ofensiva na medida em que relativiza o estupro de que a criança foi vítima, impondo sobre seus ombros todo o ônus do ato criminoso, revitimizando-a e expondo-a também a risco, dada a imaturidade de seu corpo púbere. Destaca-se, ainda, a decisão cruel de privação de liberdade da criança, que está compulsoriamente em abrigamento”, diz um trecho do documento.
“O Estado, a família e a sociedade têm o dever de proteger as crianças e resguarda-las de toda e qualquer agressão. A vida e a incolumidade física dessa vítima de apenas 11 anos deve ser preservada”, ressalta a FNPLA.
Em 2020, uma criança de 10 anos, moradora da cidade de São Mateus (ES), que era estuprada pelo tio desde os seis anos de idade, teve seu direito ao aborto legal negado. Os médicos do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) se recusaram a fazer o procedimento, após a menina dar entrada na ala de atendimento a vítimas de violência sexual.
Diante da negativa do hospital, a criança precisou viajar para Recife (PE) para fazer o procedimento no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), que integra o Complexo Hospitalar da Universidade de Pernambuco (UPE) e que atende casos de aborto legal desde 1996. Sob fortes protestos de fundamentalistas religiosos, que tentaram invadir o hospital para impedir o procedimento, o aborto legal foi realizado.
Aborto legal em crianças
Uma menina de até 14 anos passou por aborto legal por semana no país, desde o início do ano. É o que aponta o levantamento feito pelo Portal Metrópoles, por meio de informações do DataSUS. Segundo o veículo, de janeiro a abril deste ano, 15 garotas com até 14 anos conseguiram fazer a interrupção da gravidez pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O aborto legal no país é permitido em três casos: quando a gestação representa risco para a vida da mulher; após estupro/violência sexual; e em situações de feto anencéfalo.
No mesmo período de 2021, foram 45 abortos legais realizados em meninas de até 14 anos; em 2020, 30. "É difícil avaliar a variação dos números, que podem ser fruto de subnotificação do sistema, por exemplo", destaca a matéria que divulgou os dados.
Com informações do Portal Catarinas, Metrópoles e MPF. Foto: Pixabay e Vanessa Tutti